Certezas do banho



Abri a torneira, a lâmpada se apagou.

Já é noite e eu não consigo ver direito nem os ladrilhos do box. Os feixes de luz, que são refratados pelo vidro sujo do basculante, permitem apenas que a silhueta dos objetos seja formada pela penumbra. Somente os tons de cinza e preto são captados pelos fotoreceptores da minha retina.

Não entendo o motivo pelo qual a lâmpada parou de funcionar, mas como eu já estou nu debaixo do chuveiro, iniciarei meu banho. No escuro, enquanto me ensaboo, começo a refletir sobre o porquê da ausência de luz no meu banheiro. Percebo que não faltou luz, na medida em que está quente a água que cai do chuveiro elétrico e escorre pelo meu corpo. Com isso, resta apenas uma opção: a lâmpada tinha queimado. É óbvio!

A lâmpada incandescente com dois fios de cobre e um filamento, como aquela que estava apagada ali ao lado, foi desenvolvida por Thomas Edison em 1879. Logo, eu estava tomando meu banho como Edison tomava antes de sua espetacular invenção. Claro que não! Se o cara que produziu a primeira lâmpada do mundo tomava banho no escuro, ele era muito burro, diferentemente do que é esperado. Certamente os banhos dele eram com a iluminação de um lampião ou durante o dia, sob a luz do Sol.

Enquanto meus neurônios trabalham, continuo no devaneio do pensar... Seres humanos, que possuem o polegar opositor, podem chegar a conclusões utilizando apenas a cabeça, a lógica. No entanto, a certeza de que o raciocínio resultará em uma resposta aceitável está atrelada às premissas básicas do argumento. Sem essas proposições iniciais, ideias inteligíveis não poderiam ser criadas. Dessa forma, se questionarmos as "hipóteses verdadeiras", nenhuma cognição poderá ser feita, nada poderá ser inferido. Não haverá validade na argumentação.

Assim, recomeço minha objeção a cerca da ausência de luz no meu banheiro. Será que a lâmpada queimou mesmo? Eu sei que sim, porque o chuveiro é elétrico e a água está quente.

Mas quem me garante que a água está quente? A única pessoa que pode afirmar isso sou eu, que estou sozinho nesse banheiro. E se, por algum motivo desconhecido por mim, o meu sistema sensorial estiver percebendo mal a temperatura das coisas? Aí, utilizando a razão, eu poderia até dizer que a água está fria, logo, faltou luz. Lógica pura e simples.

Entretanto, partindo da premissa de que a água está fria, eu poderia dizer que a resistência do chuveiro queimou. Nesse caso, não posso afirmar, necessariamente, que faltou luz, pois quem me garante que está escuro? Imagine que os neurotransmissores, além de se comunicarem com o meu sistema sensorial, tem também uma relação direta com o meu sistema visual. Eu poderia, dessa maneira, estar vendo tudo escuro e sentindo a água quente, quando na verdade está tudo claro e a água gelada. Será que eu também estou com algum problema na vista?

Fecho e abro meus olhos. Tudo permanece escuro. Fecho de novo. Reabro-os. Agora tudo está iluminado. Eu posso observar os detalhes de cada shampu que se encontra no chão do box. Olho para cima e vejo a mancha úmida da infiltração no teto. A luz havia voltado? A lâmpada não estava queimada? Estou com problema na vista? Fudeu, e agora? Nunca saberei se a luz estava acesa ou apagada. Nunca saberei, nunca saberei! Nunca... Uma profunda angústia toma conta da minha alma. Sinto-me reduzido a minha insignificância dentro deste Universo em constante expansão. Deduzo que o meu saber não representa nada dentro da imensidão do cosmo. Quase choro repleto de certezas inconvenientes.

Enxugando minhas costas e olhando para o espelho, acostumo-me com a ideia de que existem perguntas que eu nunca saberei a resposta: "o ovo ou a galinha?", "o que havia antes do Big Bang?", "Deus existe?". Daqui pra frente, "a luz estava acesa?" será uma dessas incógnitas em minha vida.

Já completamente seco, saio do banheiro enrolado em minha toalha com a certeza de que existem coisas que eu nunca terei certeza. Meu pensamento é interrompido pela voz da minha mulher: - Amor, temos que trocar o bocal desse banheiro. Ele tá com mau contato.


[ Foto 1: Lâmpada de teto. Autor desconhecido ]

[ Foto 2: Lâmpada explodindo. Autor desconhecido ]

[ Desenho: Lâmpada e papel. Pedro "Fenris" ]

Amigo oculto



Eu ia ler um poema - um belo poema -, mas achei que seria pouco, talvez superficial. Quis criar, então, algo meu, algo diferente, algo jamais lido em outra ocasião. Surgiu uma dificuldade: traduzir o significado de amizade não é como ler um dicionário, pois certamente cada um aqui tem uma percepção distinta do que é ser amigo. Pensei em contar duas histórias:


A primeira história é sobre um rapaz que não era um grande gênio, nem um exímeo estudioso, mas se destacou por ser um excelente profissional. Era visto como aquele que não falhava, pois qualquer ordem que lhe fosse dada era executada de forma incontestável. Até mesmo os comandos mais difíceis eram atendidos por ele sem reclamação, onde os objetivos eram cumpridos perfeitamente e dentro do prazo determinado. Já casado e com filhos, este homem reservado, até o momento cabo do Exército, começou a ganhar visibilidade e subiu de patente por se distinguir dos demais a sua volta. Seus conhecimentos e sua dedicação serviram de passaporte para a admissão ao cargo mais alto de seu departamento, ocupando uma chefia de grandiosa importância. Justamente por ser percebido como infalível em suas ações e extremamente competente em suas atividades, lhe foi dada a tarefa de resolver um grande problema de transporte, tão grande que prejudicava a sua Pátria. O problema, que até então não havia sido solucionado por ninguém, fora resolvido de maneira eficiente e inovadora, onde pouco se gastava. Este ilustre homem foi condecorado pelo Chefe de Estado de seu país e reconhecido por toda a sua Nação pela grande façanha que havia feito.

A outra história é sobre um pequeno garoto que viveu em um orfanato durante a sua infância e trabalhou como coadjuvante em peças de teatro. O florescer do seu talento veio com um personagem cômico de tablado, um pastelão clássico à moda antiga. A companhia em que este jovem atuava foi realizar apresentações na América e lá ele fora contratado por um modesto estúdio de cinema. No princípio não parecia se destacar, mas aos poucos foi ganhando seu espaço e conseguiu até a direção de um filme, o qual não foi nada espetacular, mas lhe abriu portas para a gravação de outras películas. Resolveu, então, criar um personagem caricato para protagonizar seus filmes. Enquanto os estúdios de cinema da época apontavam para os filmes coloridos e de ação, seus longas preto e branco e sem áudio iam se tornando conhecidos no Novo e no Velho Mundo. Intensamente, fez inúmeros trabalhos e chegou a criar seu próprio empreendimento. Porém, com seu crescente sucesso, vieram também as grandes polêmicas. Foi acusado de pedofilia por se relacionar com meninas muito mais jovens que ele. Chegou até a se casar com uma adolescente de 16 anos, se separar e se casar novamente com outra de 16. Outro grande escândalo surgiu quando uma namorada, de 22, foi à mídia pedindo o reconhecimento de um filho que ele dizia não ser seu. O pior momento foi quando o próprio governo dos Estados Unidos o acusou por atividades antiamericanas, pois seu posicionamento político, que era visivelmente transmitido em seus filmes, se mostrava ser contra o capitalismo. Foi deportado por suspeita de subversão e decidiu viver na Suiça.


Essas duas trajetórias de vida são bem distintas. Aparentemente, uma de sucesso absoluto e indiscutível; e outra de sucesso turbulento ou talvez até de fracasso, dependendo do modo de ver. Enfim...

O primeiro personagem se chamava Karl Adolf Eichmann e ele ocupava a mais alta patente da Gestapo, polícia secreta da SS que era comandada pelo partido Nazista do Terceiro Reich de Hitler. O problema de logística pelo qual ele ficou responsável é chamado de “Solução Final” e foi um dos mais cruéis planos da História: o extermínio frio e calculado de milhares de judeus na Alemanha Nazista e o genocídio irracional nos campos de concentração. Eichmann, que é conhecido por ser o maior arquiteto do Holocausto visto durante a Segunda Guerra Mundial, desenvolveu e executou as formas mais desumanas e impensáveis de morte, gerando um sofrimento imensurável.
Em 1961, foi julgado por crime contra a humanidade e condenado ao enforcamento.

O segundo personagem se chamava Charles Spencer Chaplin Jr. e ele foi brilhante como ator, diretor, roteirista, músico, produtor e, acima de tudo, ser humano. Lembrado pelos seus esplendorosos longas-metragens, Chaplin é considerado o maior cineasta da História. Seu talento e criatividade transformavam cada filmagem sua em uma obra de arte. Com a simplicidade de seus gestos e feições, seu personagem "Carlitos" - conhecido também como Vagabundo - fazia transbordar alegria e felicidade nas almas de seus telespectadores. A posição política de esquerda de Charles Chaplin é evidenciada em sua crítica à exploração do trabalho do proletariado e a afronta ao governo nazista de Hitler.
Em 1972 ganhou um prêmio especial da Academia e foi ovacionado e aplaudido de pé em uma das maiores aclamações do Oscar. Em 1975, ganhou o título de Sir pela Rainha Elizabeth. Faleceu na Suíça, aos 88 anos, ao lado de sua esposa, de 51.


Até terminar as duas histórias, não sabia ao certo por que as estava escrevendo. Afinal, não havia uma relação direta de amizade nas narrativas lidas. No entanto, comecei a buscar nas entrelinhas a “moral da história”, o que poderia ser extraído de toda essa contradição. Achei algo... o Eichmann morreu enforcado numa prisão e sozinho; e o Chaplin morreu em casa ao lado de sua esposa, que era sua amiga. Mas isso era muito simples, era muito banal! Não era o que eu procurava, eu queria algo que representasse melhor o elo que existe entre amigos.
Então, relendo, pude perceber que os textos falam sobre familiares, chefes, subordinados, mas não falam sobre nenhum amigo. Nem um amigo sequer. Percebi que os registros não se referem à amizade, mas ao caráter de cada um deles: enquanto um fazia coisas do mal sem objeções ou questionamentos, o outro criticava o mal, buscando uma melhoria para o mundo. Era exatamente isso que eu buscava. Os amigos não precisam ser mencionados! O caráter de uma pessoa não está na dedicação, no empenho ou na intensidade com que faz suas tarefas, mas está nas suas atitudes e nas decisões que toma no curso de sua vida. E tais atitudes não são feitas dentro de uma cápsula, elas são feitas num grande sistema global; bem como são percebidas e analisadas pelas pessoas que te rodeiam e te cercam. O mais curioso é notar que seus amigos podem aprovar ou reprovar tais atitudes e, conseqüentemente, se aproximar ou se afastar de você.
Fica claro, assim, que nossos amigos não são apenas caminhantes ao nosso lado, mas são o espelho do nosso caráter; e que no decorrer de nossa história acumulamos experiências conjuntas, que são vividas tanto por nós quanto por eles. Ou seja, eles não precisavam ser citados nessas pequenas biografias. Eles já estão ali! Estão tão presentes nas palavras agora lidas e ouvidas, quanto estes formandos - aqui ao meu lado - estão presentes neste teatro, neste palco.
Para os que acreditam em destino ou para os céticos da coincidência, isso me faz lembrar um verso do próprio Chaplin, que eu ia ler nesse discurso:

“(...) Cada pessoa que passa em nossa vida,
passa sozinha, e não nos deixa só, porque deixa um
pouco de si e leva um pouquinho de nós.
Essa é a mais bela responsabilidade da vida e a
prova de que as pessoas não se encontram
por acaso.”



[Este foi o meu discurso de formatura]