Goteira


Infelizmente eu tenho uma goteira.
Ela apareceu na sala do meu apartamento. Não sei de onde veio, nem porque surgiu. A única coisa que notei foi que se transformou em uma poça o meu tapete. Eu tinha acabado de chegar do trabalho e estava cansado. Só tive saco de arrastar a alfombra e pegar uma vasilha para por no piso molhado, na direção do vazamento.
Na cama, eu virava de um lado para o outro, mas o barulho das gotas pingando não me deixava dormir. Do teto para o chão, o som ecoava por toda a casa como se estivesse dentro do meu crânio.
O ping ping era insuportável.
Acordei no dia seguinte tentando esquecer a goteira, mas ela não me deixava. O balde estava cheio e eu tinha que derramar a água fora antes que uma nova poça fosse formada e alcançasse o sofá. “Estou atrasado, que merda! Maldita goteira!”.
Cada esbarrão no balde fazia-me lembrar da aporrinhação: pega o pano, seca o chão, esvazia o balde; pega o pano, seca o chão, esvazia o balde. O pingar das gotas era constante, chegava a marcar o tempo. Ping... Ping... Ping... Ping...
Os dias foram passando e a pingadeira, pouco a pouco, foi entranhando-se em minha vida. Eu não tropeçava mais no balde, nem me incomodava com o barulho da água.

Felizmente eu tenho uma goteira.
Fizesse chuva, fizesse sol, ela continuava marcando o meu tempo. Era uma companheira de verdade. O conta-gotas da minha sala já pertencia a minha rotina. A nossa sincronia era tão perfeita, que eu possuía baldes de tamanhos distintos dependendo do tempo que fosse ficar fora de casa. Cheguei até a comprar uns coloridos, combinando melhor com os móveis do ambiente. Todos com cores vivas: vermelho, azul, amarelo.
Nos finais de semana, quando tinha tempo de curtir com prazer os meus hobbies, gostava de ler em minha confortável poltrona. E a cada pausa na leitura, apreciava a harmonia musical da goteira.
O ping ping era relaxante.
Enquanto antes eu não tinha tempo para resolver o “problema”, agora esgoto o meu tempo com ele. A goteira é querida, é amada. Ela ocupa um vazio que havia dentro do meu peito e eu nem suspeitava que existisse.
Certa vez, chegando ao lar, um silêncio ensurdecedor invadiu os meus tímpanos. O balde estava vazio. Sua coloração viva morreu naquele instante. Ele tornou-se feio. A goteira, que o embelezava, não estava mais em seu lugar. Ela havia simplesmente sumido, secado.
O ping ping deixou saudade.


[ Imagem: Baldes Coloridos, 2010. Filó Diniz ]

(*) Agradeço à minha prima, Anna Cecília Bonan, que me deu a oportunidade de trabalhar com a matéria-prima de seu conto e permitiu que eu o desenvolvesse à minha maneira.

(Sem) Destino


Alberto era casado, tinha três filhos, todos matriculados em colégio particular. Era um marido exemplar, um ótimo pai, ótimo filho, ótimo neto. Sempre estudou muito, tinha um excelente emprego, ganhava muito bem e viajava pelo mundo. França, Espanha, Itália, podia escolher qualquer destino. Certo dia, sem a ninguém avisar, arrumou as malas, apenas uma mochila, onde cabia o que importava - uma muda de roupa, uma necessaire, um revolver 38 e um ipod. Pegou a chave do carro, que metodicamente deixava, todos os dias, em cima do aparador da sala, ao lado de sua carteira e seu blackberry. Ele queria ir para longe, buscava algo diferente, não sabia exatamente o quê, mas procurava uma vida que ele não tinha. Essa era a certeza dele no momento em que trancou a porta da sala do seu duplex.

Não ligou o som do carro, dirigiu em silêncio, um silêncio que lhe cortava a garganta, pois deixava pra trás o patrimônio que acumulou durante quase meio século. Uma perfeita construção, agora em decadência. Uma ruína erguida por ele próprio, por suas escolhas, todas bem feitas e bem pensadas. Talvez, até demais.

Era uma noite quente, os relógios da Avenida Atlântica alternavam entre 30° e 23:55h. Alberto dirigia sem rumo e sem direção, como jamais havia feito antes. Ele passava pelas ruas da Zona Sul do Rio notando cada detalhe. Os quiosques da praia fechados, as putas de Copacabana em busca de trabalho, os bares de esquina já vazios, os fétidos caminhões de lixo circulando. A janela do seu carro emoldurava uma tela pintada de solidão, em cores desbotadas como um quadro de Hopper. Ele observava, através do pára-brisa do seu Volvo, o paradoxal cenário da cidade maravilhosa, na qual dividem o palco a beleza das paisagens e a miserável rotina dos mendigos pedindo esmola.

Seguiu pelo aterro do Flamengo, onde nenhum carro transitava, somente o dele. Avistou, ainda de longe, um vulto branco atravessando a pista. Assustou-se e reduziu a velocidade para verificar o que era. Ao se aproximar do vulto, que agora já começava a tomar forma, freou o carro até parar. Nitidamente visualizou uma mulher de branco, de noiva. Não havia véu, nem grinalda. O vestido usado por ela não era decotado, mas deixava à mostra o seu colo. Sua alva pele era como leite e seus cabelos cor de vinho, ao escorrerem pelos ombros, contrastavam com a sua clara tez.

Alberto ficou encantado com a ruiva que mantinha a cabeça baixa e o rosto escondido atrás das duas mãos. Rapidamente, sem sequer girar a chave na ignição, ele saiu do carro e foi de encontro à mulher. Logo percebeu que ela chorava. Chorava tanto que tremia. Ele chegou perto e envolveu-a com os braços. O abraço foi retribuído por outro mais apertado, quase sincero. Sussurrando no ouvido da moça, perguntou baixinho “porque está aqui sozinha, isolada, e chorando?”. Ela respondeu entre soluços e lágrimas, “meu noivo não me amava e por isso não fui à igreja, o abandonei no altar”. E chorou mais, aos prantos repetia “nunca fui amada, nunca, por ninguém”, em uma atitude que o consternava e o excitava, num movimento conjunto e pulsante.

“Você não pode ficar aqui. Para aonde quer que eu te leve?”, perguntou o homem.
“Para qualquer lugar”, respondeu enquanto enxugava o lindo rosto borrado de maquiagem.
“Então, vamos até o meu barco”, decidiu ele.

Eles dirigiram-se até a Marina da Glória sem trocar uma palavra sequer. Ao mesmo tempo em que a estranha situação os silenciava, também os fazia pensar em coisas absurdas. Nesse momento, os pensamentos mais impuros já dominavam ambas as mentes confusas. Havia pouca luz, apenas a iluminação da Lua quase cheia, que atuava como cúmplice do desejo velado pelos dois. Ao estacionar, saíram do carro e se beijaram como adolescentes, a respiração ofegante revelava o tesão que o casal sentia. Enquanto tinha suas costas arranhadas, o homem apertava a pequena bunda da moça e lambia os bicos rosados dos seus peitos. Os seios da mulher cabiam perfeitamente na forma de concha que Alberto fazia com mãos ao apertá-los. Entre os beijos, que eram descontinuados pela respiração esbaforida, foram até o deck, na popa do barco, e começaram a trepar ali mesmo na varanda externa, ela apoiada sobre o corrimão de entrada e ele por trás. Os gemidos eram altos e acompanhavam a velocidade com que metia seu pau na boceta da noiva foragida. Entraram no pórtico interno esbarrando nos utensílios decorativos, que eram ignorados mesmo quando se quebravam ao cair no chão. Com vigor, ele forçava uma penetração cada vez mais profunda, fazendo a mulher de cabelos rubros gritar de dor e prazer ao mesmo tempo. De um lado para o outro, variavam a intensidade do sexo à medida que mudavam de posição. Ora mais, ora menos selvagem, treparam feito animais.

A manhã chegou com uma brisa gelada após a última foda. O homem ficou recostado apreciando a serenidade na qual se encontrava a moça, que estava com o vestido semi-aberto sentada na outra extremidade da cama. Naquele instante, a única vontade de Alberto era permanecer parado, ali, o resto da vida contemplando a beleza da linda amante. Seu passado não tinha mais importância, sua história poderia ser apagada. As memórias dele não valiam mais nada quando comparadas às daquela noite.

“Tenho que ir, meu marido me espera”, disse a ruiva, levantando-se da cama num impulso.
“Espere!”.
“Não posso, tenho que ir”, insistiu ela.
“Eu estou disposto a largar tudo por você. Minha mulher, meus filhos, minha família. Tudo!”.
“Não acredito nisso... Essa noite não passou de uma aventura para nós. Um delírio! Nada disso é real!”.
“O que você quer que eu faça pra te provar? Eu te amo! Isso é real!”.
“Para de dizer essas coisas. Nenhum homem nunca me amou antes, não será você que irá me amar agora. Ainda mais depois de uma fantasia como essa”, disse ela chorando. “Você não vai me convencer. Vou embora!”.
“Mas eu te amo...”, ele falou desolado, sabendo que não haveria como mudar a decisão da moça. Enquanto ela abotoava apressadamente o vestido branco, Alberto, de mãos atadas, angustiava-se com a certeza feminina do discurso que acabara de ouvir. À medida que os botões da roupa dela eram fechados, ele se sentia cada vez mais esmorecido.

Em um surto de desespero, Alberto pegou na mochila o seu 38 e descarregou os seis projéteis do tambor no peito de sua amada. Ao passo que atirava, sua angústia ia reduzindo até ele se dar conta do que realmente estava fazendo. Em estado de choque colocou o cano da arma na boca e ficou estático com o olhar fixo, pensando somente na tragédia que protagonizava.

A noiva caiu desacordada sobre a cama com o vestido manchado de sangue e um brando sorriso estampado no rosto. Quando a primeira bala penetrou em seu coração, veio-lhe a certeza de ter sido amada por aquele homem. Ela morreu feliz, como jamais havia sido.


[ Tela: Noiva ruiva. Autor desconhecido]

(*) Créditos ao meu pai, Luiz Cesar Faro, e ao amigo Rodrigo Paes, que me ajudaram a lapidar este conto e tirá-lo da bruteza inicial.

A festa (revisado)


- Olá, meu grande amigo. Como está?
- Estou ansioso e preocupado.
- Não é pra menos...
- Vamos ao que interessa! Pensei bastante no assunto e estou querendo uma bela festa, pra ser lembrada por todos. Quero que chame gente do trabalho, da faculdade, do colégio, mas principalmente os amigos mais íntimos.
- Um motivo para um reencontro de todos?
- Exatamente, um motivo para um reencontro, mas não de todos. Alguns merecem o esquecimento. Às vezes penso que eu não passo de uma vaga lembrança na memória dos "velhos amigos", tipo poeira cósmica solta no espaço. Então, pra que convidá-los? Esses não precisam sequer ficar sabendo, pois acredito que seria indiferente.
- Você possui o contato de todos que quer chamar?
- Juntei a maioria. Tome a listagem. Se estiver faltando alguém, o Orkut se encarrega de achar para nós.
- Orkut? Isso já está ultrapassado, meu velho amigo.
- (Olhar de desleixo) MySpace, Facebook, Twitter. Use a inutilidade que quiser, mas tente achar as pessoas, por favor. Nesta lista contém quem há de mais importante.
- Ok, ok. Não será difícil. Familiares?
- Sim... Esses sempre estarão presentes, mesmo que eu não os convide. É inevitável. Família é um fardo que você carrega para o resto de sua vida. Ou a dívida é financeira ou é emocional, contudo, uma coisa é certa: ela é impagável.
- E quanto à festa em si?
- Você me conhece. Quero algo diferente do tradicional, alguma coisa que fuja aos padrões, justamente, por ser agradável.
- Tipo o quê?
- Uma recepção com canapés variados, queijos e pastas.
- Patê, pastas de queijo, cebola...
- Isso, diversas. Depois desses tira-gostos, gostaria que um chef preparasse um almoço de qualidade.
- Ninguém liga pra qualidade, meu velho. As pessoas querem comer qualquer porcaria e arrotar caviar. Sabes disso melhor que eu.
- Quem sabe não aproveitam a oportunidade e aprendem a comer bem?
- Você acha que alguém que acorda todo domingo e fica em pé no meio da rua pra almoçar aprenderia? As pessoas entram no restaurante após uma hora de fila, são atendidas com um servicinho de merda e pagam caro por isso. Pra piorar, depois de tudo, tem a cara de pau de dizer que o local é de qualidade e a comida, que é feita aos quilos e fica entregue às moscas, é excelente. Até recomendam! Você acha que essas pessoas aprenderiam?
- Fodam-se as pessoas! (Pausa) Desculpe-me. A festa é minha e eu quero um almoço decente, pelo menos para os que apreciam uma boa comida.
- Seria perda de tempo e de dinheiro, mas se você quer assim...
- Eu te entendo. Porém, não quero ser conivente com esse tipo de atitude, com essa cegueira do cotidiano. Prefiro "perder" este tempo, que não me fará falta, para os poucos que valorizam coisas boas de verdade. Quanto ao dinheiro, eu tenho o bastante.
- Admiro essa nobreza que habita em seu coração. Entretanto, não possuo tal virtude. Pois bem, qual será o cardápio?
- Pensei em algumas opções, mas ainda estou na dúvida. Acho melhor consultar o Aloísio e o Arnaldo, da Casa da Suíça. Embora o primeiro seja tricolor e o segundo, vascaíno, não há melhores cultores da boa mesa no Rio de Janeiro. Além disso, eles são praticamente da família.
- Está anotado.
- O que interessa é que os pratos sejam bem feitos.
- Vamos às bebidas?
- As bebidas... A melhor parte! Festa sem álcool é igual a sexo sem boceta.
- (Risos) O que quer que eu compre? Champagne?
- Sirva champagne, whisky, cerveja... Enfim, sirva de tudo.
- Contrato um barman para fazer coquetéis?
- Nada disso, ai já é demais. Pode até ter mais opções, mas nada muito colorido. Isso é coisa de mocinha.
- Algum vinho em especial?
- Essa parte eu deixo por sua conta, pois você entende disso melhor que eu.
- Deixa comigo.
- Bem, acho que é isso.
- Faltou a música... Vai querer banda ao vivo, DJ ou algo do tipo?
- Não! Sem dança! Pode tocar Jazz, Blues e Tango, mas não quero nada muito alegre.
- Compreendo.
- Por favor, não esqueça de tocar música clássica no fim, terminando com Réquiem de Mozart.
- Bom, muito bom. Será um grande evento...
- Agora faça-me um favor. Traga-me um copo de Jack Daniel`s sem gelo e peça para o doutor desligar os aparelhos em 15 minutos.
- Vou sentir saudades, meu amigo.
- Eu espero não sentir nada. Uma última coisa: tome conta dela.

{ Esse conto foi publicado na edição n° 48 da revista Inteligência, em Março de 2010. }