Capela 7



Ali estava eu, deparado àquele corpo coberto com flores brancas e amarelas. Sentia o cheiro característico de velório, que irritava o meu nariz e empesteava toda a capela 7.
Da janela para o caixão eu andava, pra lá e pra cá. Da janela via todo o cemitério e imaginava todas as famílias que haviam passado por ali. Desde as mais ricas que possuíam os jazigos mais extravagantes até as mais modestas. Todas com o mesmo sentimento de perda, de vazio. Uma sutil sensação de que a pessoa, que se despede ali deitada, se tornara apenas uma lembrança, um filme, uma fotografia.
Enquanto caminhava para o caixão, reparava o ambiente que me cercava com 13 coroas de flores - que custam entre R$ 500,00 e R$ 1.500,00 cada, na floricultura do Cemitério São João Batista - dadas por familiares próximos, distantes, amigos de infância, de trabalho e pessoas sem importância nenhuma na vida dela. Ao mesmo tempo, recebia as condolências de diversas pessoas que nunca havia visto antes. Uns realmente muito sensibilizados com o falecimento, o resto fazendo o papel de nobres cristãos.

- Meus pêsames. Ela tinha um coração muito puro.
- Sim. Eu sei.

- Ah, meu filho. Deus irá cuidar muito bem dela.
- Sim. Eu sei.

- Não dá pra acreditar que uma pessoa tão boa vai-se embora! Céus!
- Sim. Eu sei.

Notei que muitos choravam. Eu não. Só conseguia pensar em toda hipocrisia que me cercava. Pessoas que passaram a vida falando mal dela, agora estavam aqui presentes como se tivessem grandes laços de amizade. Um bando de duascaras que estavam do lado na hora de pedir, mas nunca na hora de oferecer.
Me aproximei dos meus irmãos. Aninha e Fred não se aguentavam em pé de tanto que choravam. Minha tia os consolava.
Fui até a cantina para comprar uma água. Esperando o troco, me dei conta que desde que fiquei sabendo de sua morte não tive nenhuma vontade de chorar. Comecei a me questionar:

- Por que eu não estou chorando? Ela é minha mãe também. Ainda não deve ter caído a ficha. Daqui a pouco, quando vedarem o caixão, eu vou começar a chorar que nem os meus irmãos.

Voltei à capela 7 com a garrafa d`água na mão e ofereci aos meus irmãos. Ao vê-los soluçar, continuei a pensar:

- Será que eles estão sentindo mais que eu a perda da mamãe? Eu estou sentindo a perda dela? Por que não estaria? Afinal, ela é a minha mãe.

O padre chegou para iniciar a última prece e após bonitas palavras, que provavelmente devem ser ditas em todos os funerais, concluiu:

"Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco,
E bendita sois vós entre as mulheres e
bendito é o fruto de nosso ventre, Jesus.
Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores,
agora e na hora de nossa morte.
Amém."

Sempre achei que todo esse cerimonial de padres, rezas e preces poderia ser descartado. Eu tinha a impressão de que as pessoas só deixam de ser pecadoras nesses momentos difíceis. Duvido que elas rezem antes de dormir ou a cada pão nosso. Mas minha mãe gostava dessa baboseira toda.
Finda a reza, o caixão foi selado. Neste momento, quem ainda não havia chorado começou. Menos eu.
Cada familiar pegou em um apoio do caixão para levá-lo ao local do enterro, um jazigo nada modesto. No caminho eu pensava:

- O que as pessoas devem estar pensando de mim? Eu sou o filho mais velho e não estou chorando. Nem pareço sentir a morte da minha própria mãe.

Lembranças vieram à tona. Discussões tolas, decisões irracionais, opiniões díspares. Apenas momentos ruins surgiam em minha mente. Castigos de infância, brigas sem razão.

- Por qual motivo eu deveria amar a minha mãe? Por qual motivo? Preciso de apenas um.

Comecei a buscar em minhas memórias mais distantes algo que me confortasse, que me fizesse crer que eu amava a minha mãe. Nada surgia. Mesmo assim, eu insistia e continuava uma incessante busca de lembranças. De nada adiantava, pois mais coisas ruins brotavam em minha cabeça. Eu não queria acreditar, mas começava a perceber que a minha mãe e eu não tínhamos nada em comum um com o outro.

- Na verdade, eu não a amava. Eu sequer gostava dela. Pelo contrário, eu odiava ela.

O caixão foi entregue aos coveiros, que o pinçaram e começaram a descê-lo em direção à cova já aberta. À medida que o defunto ia descendo, eu percebia que fazia parte de toda aquela hipocrisia que rodeava a sepultura. Tudo aquilo que eu questionava veemente minutos antes agora estava concentrado em minha alma. Notei que eu era, provavelmente, o mais hipócrita de todos os presentes. Eu pertencia àquela corja como hiena ao seu bando.
A madeira tocou o fundo do túmulo. A terra era jogada sobre o caixão. Uma pá de cada vez. Um sorriso se formou em meu rosto. Um sentimento de alegria ecoou em meu peito.

- Não dá pra acreditar, mas eu estou feliz com a morte da minha mãe.

Cheguei em casa e encostei-me na cama. Com um retrato da minha mãe nas mãos, passei a noite em claro. Chorando.


7 comentários:

Anônimo disse...

Aí, Arenque! Sabe que vagabundo daqui a pouco vai meter teu nome aqui, mesmo que sem querer, né?

Achei bem legal, meio louco, mas vindo de você, era de se esperar.

Agora, a baboseira sobre a capital nacional da violência você podia ter deixado de lado! hehehe

Enfim, Capelinha chapéu de russo, tamo aê!

Abraços, Arenque!!!

Anônimo disse...

É meu querido!

As respostas que procuramos sobre nós mesmos nem sempre as encontramos...

A vida é feita mesmo de contradições, de sentimentos confusos como os deste rapaz que perdeu a mãe e não sabe se fica feliz ou triste.

Mas no final, ele acaba chorando né mesmo?!

Achei interessante e bacana retratar estes conflitos que são tão difíceis de expressá-los, pois não deixam de falar de sentimentos, e como tais tão complexos!

Pra mim vc já se saiu bem neste primeiro texto!
Hehehehe

Te adoroooo!

Beijossssss

Anônimo disse...

É...até que pra alguém que se auto-denomina maluco, você está deveras normal; até que para um cara de exatas, você é um ótimo escritor. Entre outros "até que" e "paras" por aí...

Enfim, prossiga que está tudo muito bom, tudo muito legal. Texto coeso, bacana.

E porra, os valores das coroas de flores são ficção ou realidade? Eu não sabia que uma coroa de flores era tão cara...

Como já diz o ditado de família... tem gente que você só conhece ou vê em casamentos ou enterros... nada mais verossímel.

Imagina então se no Brasil tivesse a tradição americana de se dar festão com altos comes e bebes em velório? Putz...

Anônimo disse...

É rapazinho, vc me surpreendeu. Gostei!

Anônimo disse...

Gostei muito da narrativa. Eu me lembrei de Albert Camus, no livro "O Estrangeiro". Acredito que vá gostar. De fato, o luto real não se realiza como fórmula de etiqueta social, mas em foro íntimo, quando, sozinho, de nós para nós, ficamos tristes. A sociedade nos obriga, realmente, a encenarmos - sob pena de sermos "expelidos" ou "mal interpretados" pelas mentes rasas.

teresa devir disse...

és um escritor de araque msm! aehheh
qd terá mais um publicado?

lilian disse...

não sabia que vc escrevia tão bem,surpresa boa,fica mais proximo ter seus escritos ,suas e
moções,suas interpretações de vida
vc ,e meu lindo e adimiravel afilhado
te amo

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